sexta-feira, 18 de abril de 2008

Sinal dos tempos: o preço do progresso

A visão é de um imenso campo deserto. A monotonia se descortina diante dos olhos de quem observa aquilo que é uma espécie de vegetação de cor dourada. De repente, o ronco de motores quebra o silêncio. Um olhar mais apurado e é possível ver, ao longe, os vultos trêmulos de monstrengos coloridos que avançam sob o sol escaldante – de pelo menos 40 °C –, a irromper a imensidão do lugar. É tempo de colheita de soja.

“Isso aqui era tudo mata fechada. Era peroba, angico, cedro, ipê”, fala, saudoso, um ex-agricultor, olhando em volta. Seu Mané, hoje com quase 90 anos, é vítima do “êxodo rural” – fenômeno registrado na década de 70, quando grandes áreas de mata nativa começaram a ser devastadas na região de Caarapó, para dar lugar à agricultura empresarial e à pecuária extensiva, o que obrigou pequenos agricultores familiares e sitiantes a vender suas propriedades e aventurar-se na cidade. “A minha casa era no meio do mato. A minha lavoura, também, eu não precisava derrubar nada, aqui e ali existia sempre um lugar limpo, para eu plantar o meu feijão. O arroz, eu plantava no banhado”, conta.

Enquanto as máquinas avançam “podando os pés de soja rente ao solo”, o velho senhor vai recordando antigas histórias. Ele conta que era comum, nos fins de tarde, ver bandos de catetos, grupos de capivaras, “mateiros” e uma infinidade de outras espécies de animais passando nos fundos da sua casa, que ficava perto do Rio Piratini. Papagaios, araras, maritacas, sabiás, canarinhos, curiós e tantas outras espécies da fauna tropical - duas vezes por dia, de manhãzinha e à tarde, religiosamente -, proporcionavam um verdadeiro espetáculo de sons e cores. Era como se fosse uma grande orquestra sinfônica da floresta.

Hoje, tudo isso é passado.

“Seu Mané” é apenas um personagem criado para ilustrar a história real de muita gente que viveu a situação aqui descrita. Pessoas que foram vítimas da ação desenfreada em busca do que se chamava, à época, de progresso. “A soja é a grande descoberta comercial, que vai trazer progresso para os municípios”, argumentavam, naquele tempo, políticos e grandes produtores, para justificar a devastação das matas existentes na região da Grande Dourados.

Caarapó é um município de pouco mais de 22 mil habitantes localizado no sul de Mato Grosso do Sul. Sua origem histórica tem por base a erva-mate nativa. Aliás, o nome “Caarapó” é originário dessa planta – “Caa”, que, em tupi-guarani, significa “erva-mate”, e “rapo”, “raiz”. Assim, Caarapó é a Terra da Erva-mate.

Segundo historiadores, Caarapó recebeu esse nome em virtude da abundância da erva-mate nessa região, que foi amplamente explorada de 1915 a 1945. Já o ciclo da madeira ocorreu entre 1960 e 1980. “A cidade chegou a ter 45 serrarias ou madeireiras em franco desenvolvimento, extraindo uma média de 400 m³ de madeira serrada por dia”, conta o professor Ramão Vargas de Oliveira em seu livro Conhecendo Caarapó, de 1987.

Oliveira prossegue o seu relato explicando que, no período da exploração da madeira, a população do município era de 46 mil habitantes. É dessa época a introdução da lavoura mecanizada. “Grande parte de suas terras foram transformadas em lavouras de soja, milho, algodão, amendoim, mamona, trigo e outros”, acrescenta o professor.

Segundo o secretário de Desenvolvimento Econômico de Caarapó, Roberto Sanches Nakayama, atualmente o município possui uma área de 85 mil hectares de terras agricultáveis. A área de pastagem é de aproximadamente 60 mil hectares. O tamanho do estrago: a totalidade da área própria para a agricultura era coberta por madeira. Da área de pastagem, pelo menos 40 mil hectares eram de floresta natural. O restante era campo e vegetação típica de cerrado. Isso significa afirmar que, só em Caarapó, foram devastados 125 mil hectares de matas naturais, o equivalente a mais de 308 mil campos de futebol!

Em um trecho do livro Conhecendo Caarapó, Oliveira afirma que as madeireiras deixaram seu rastro triste. “Hoje, o que se vê são pequenos pedaços de matas, sem sua madeira, e o que é pior: sem um replantio. E foram poucos os donos de madeireiras que se estabeleceram em Caarapó. A maioria mudou-se (...) e até mesmo para Rondônia, onde continuam destruindo sem deixar, nem mesmo, uma pequena parcela do progresso e de melhoria de meio ambiente. Ali, tudo é destruído, até mesmo o pó e as sobras de madeira”, lamenta o professor-escritor.

O engenheiro químico Raimundo Costa Nery, especialista em meio ambiente, explica que a área remanescente em mata nativa em Mato Grosso do Sul é inferior a 20%. “Em termos de biodiversidade, podemos considerar como uma perda econômica imensurável e incalculável”, observa. “Isso representa grandes prejuízos, como a extinção de espécies tanto da fauna quanto da flora ainda nem catalogadas”, acrescenta.

Outro fato que gera preocupação entre os ambientalistas é o processo de industrialização pelo qual passa na atualidade o município de Caarapó. Estão em vias de serem inauguradas duas usinas: uma de bioenergia e outra de álcool e açúcar.

O projeto de produção de biodiesel – que agrega co-geração de energia elétrica -, prevê o processamento de 500 mil toneladas/ano de soja para produção de óleo, farelo e lecitina, 116 mil toneladas anuais de biodiesel e geração de 83,1 MWh/ano de energia. A previsão de investimentos é da ordem de R$ 106,6 milhões. Haja soja!

No setor sucroalcooleiro, a outra usina vai precisar de, no mínimo, 55 mil hectares de cana-de-açúcar para atingir a meta de produzir anualmente, a partir de 2017, 330 mil toneladas de açúcar e 130 milhões de litros de álcool, que atenderão o mercado interno e o mercado externo, com investimentos que chegam perto de R$ 1 bilhão.

Se, por um lado, a produção de combustíveis a partir de fontes renováveis, como a cana-de-açúcar, provoca a redução da emissão de carbono fóssil para a atmosfera, por outro produz um resultado maléfico. A produção do etanol a partir dessa matéria-prima gera, historicamente, uma grande concentração de terra nas mãos de poucos. Além disso, o uso de monocultura reduz fortemente a biodiversidade e provoca o êxodo rural.

Até que ponto é legal, moral e ético a implantação de projetos de desenvolvimento à custa de tragédias ambientais e humanas? Qual o custo do progresso?
O que se defende é a instituição de projetos de desenvolvimento auto-sustentáveis, que privilegiem a vida. E quando se fala em vida, inclua-se a natureza. Não se trata de terrorismo psicológico ou alarmismo os alertas que os cientistas têm feito acerca do futuro do planeta Terra. O perigo é real.

Os ciclos econômicos vão e vêm. Em Caarapó, primeiramente foi a erva-mate nativa. Depois da pecuária extensiva e da agricultura da sobrevivência – hoje apelidada de “agricultura familiar” -, surgiu a devastação das florestas abundantes em madeira de lei. Atualmente, registra-se um grande processo de industrialização. Em vinte, trinta anos, o que será?

Talvez outros “seu Mané”, como o nosso personagem lá do início da nossa história, surjam para contar a possível catástrofe que pode estar se avizinhando. É o preço do progresso.